A pandemia do novo coronavírus fez avançar muito a educação a distância (EaD). Até o início deste ano, a modalidade de ensino remoto era presente em cursos de curta duração e em faculdades, mas, devido à necessidade do isolamento social, as aulas em ambiente digital chegaram ao ensinos médio e fundamental. Como resultado, testemunhamos um grande teste para o alcance dessa tecnologia e um número anormal de demissões de professores universitários. Segundo o SinproSP (Sindicato dos Professores de São Paulo), 1.809 docentes foram demitidos somente no Estado.
Esse não é um fenômeno restrito a São Paulo: milhares de outros professores foram desligados de suas instituições de ensino superior em todo o Brasil e sem contabilizar todos os profissionais de educação que ficaram sem trabalho no mesmo período.
Além do avanço da covid-19 e de todos as suas consequências econômicas, houve a redução do repasse do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), o que afetou o lucro das faculdades e fez com que os estudantes se afastassem dos cursos superiores. Em dezembro de 2019, portanto antes da chegada da pandemia ao País, o Ministério da Educação (MEC) autorizou a ampliação de disciplinas EaD de 20% para 40% nas graduações de origem presencial.
“Esse decreto começou a ser aplicado agora, razão pela qual três instituições de ensino promoveram cortes muito elevados”, explica Silvia Barbara, diretora do SinproSP. “Em dois casos (UniNove e Unicsul), o SinproSP recorreu à Justiça, alegando demissão em massa, ainda que esse conceito tenha sido desmontado na reforma trabalhista.”
Silvia conta que sempre houve uma rotatividade (ou “turnover”, para as empresas) grande na atividade docente, que costumava se concentrar no fim do semestre letivo –portanto, em junho e dezembro. A situação deste ano provocou cortes e a recolocação profissional ficou muito abaixo do normal.
Algumas dessas demissões foram emblemáticas de nossa época. Tal como o trabalho era remoto, o aviso de demissão chegou on-line. Em um dos casos, os professores receberam a notícia de que estavam desempregados por meio da plataforma que usavam para ensinar no dia anterior.
Como ficam os professores?
UniNove, Universidade São Judas, Universidade Cruzeiro do Sul, rede Laureate, Universidade Metodista e Estácio de Sá foram algumas das instituições de ensino superior que readequaram ou dispensaram parte do corpo docente enquanto voltam a atenção ao suporte digital necessário à EaD, como corretores automáticos, apostilas e videoaulas já gravadas. Essas ferramentas, vale lembrar, já existiam.
“A última barreira para desapropriar todo o trabalho do professor foi quebrada pela implementação da inteligência artificial”, conta o professor e sociólogo Gabriel Teixeira, da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, se referindo à correção de provas dissertativas por algoritmos sem a intervenção humana. Ele defende o uso da tecnologia no ensino, desde que regulamentada, transparente e de qualidade.
Nessa nova realidade, os professores se tornam produtores de conteúdo para abastecer os ambientes de aprendizagem digital, sem vínculo empregatício e muitas vezes recebendo menos de R$ 700 pela disciplina, que será reutilizada nos semestres seguintes.
Como resultado dessas ferramentas, o estudante segue um caminho de “autodidata guiado”, no qual a presença do docente é mínima, indireta ou inexistente.
Doutoranda em Educação pela Unicamp e pesquisadora do Gepecs (Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social), Graciela Gonçalves Scherdien avalia que o trabalho docente que costumava ser desvalorizado –social e economicamente–, desceu mais um degrau em direção ao fundo do poço ao ser substituído, em muitas instituições de ensino, por “robôs” nas plataformas de aprendizagem.
“Há uma diferença enorme entre negar o uso da tecnologia e fazer uma crítica consistente a ela”, argumenta Scherdien.”Precisamos lembrar que quem está por trás da utilização dessas tecnologias são grandes empresas que almejam obtenção de lucro. Sendo assim, simplificar os conteúdos, tornar as plataformas acessíveis e evitar que ocorra evasão faz parte da lógica dos ‘grandes administradores'”.
Para Taísa de Pádua Neves, historiadora e mestra em Educação, é importante distinguir o que é a educação a distância como conhecíamos, que já era precária e de baixo custo, do ensino remoto emergencial, modelo adotado por grande parte das escolas, do ensino básico ao superior, cujo ensino era originalmente presencial.
Ela foi uma entre os 1.802 docentes dispensados de suas funções.
“O fato de ser demitida durante a pandemia apenas reforçou todo o descaso que, como professora, já sentia por parte da instituição que eu trabalhava, além de mostrar com muito mais clareza a estrutura de desmonte da educação”, conta.
Nos próximos anos, segundo Teixeira, veremos o mesmo processo nas escolas, no ensino básico. Esse período que vivemos tem servido como um laboratório para as empresas, e é uma questão de tempo até alcançar todo o processo educacional.
O que acontece com os estudantes?
Somado ao baixo custo dos cursos EaD, o Fies e o Prouni (Programa Universidade para Todos) fizeram do ensino superior a distância uma possibilidade economicamente viável a muitos estudantes.
Segundo o Censo da Educação Superior, realizado pelo MEC em 2017, a EaD atendia mais de 1,7 milhão de alunos, o que representa 21,2% dos universitários do País. Boa parte deles ingressaram pelos programas sociais.
Consequentemente, os mais prejudicados são os estudantes mais pobres, que terão uma formação aquém do esperado. “Essa banalização vai atingir um público específico”, diz Teixeira. “Uma dinâmica perversa: quem não tem dinheiro vai para o EaD ‘lixo’.”
De Pádua alerta que o sucateamento da educação de agora vai dificultar o acesso a um emprego para quem sair com diploma de um curso EaD nesses moldes vigentes. “Pode ser facilmente descartado no mercado de trabalho quando for comparado com o indivíduo que teve condições de realizar sua formação no ensino presencial.”
Algumas instituições de ensino superior do Brasil implantaram a ferramenta de autocorreção com algoritmos –chamada de “robôs” ou de “inteligência artificial”– sem avisar os estudantes. A plataforma passou a corrigir automaticamente não apenas as atividades objetivas de múltipla escolha, mas também as dissertativas que exigiam interpretação do leitor. Há relatos de estudantes que enviaram provas de disciplinas trocadas e obtiveram boas notas.
“Alunos sendo corrigidos por algoritmos, sem prévia autorização e por um serviço que não foi contratado é uma questão ética e jurídica”, pondera Teixeira. “O MEC tem que zelar por isso, deveria ter um regulamento.”
O que acontece com a educação?
Teixeira lembra que pedagogia é o segundo curso mais procurado em EaD. Dentro dessa lógica, seriam esses formandos que, com acesso ao conteúdo criado por um especialista na área, se tornariam tutores ou interfaces humanas na relação digital entre plataforma e estudante.
Esses novos funcionários farão parte de uma realidade na qual o docente, como representante das ciências, não é mais uma peça-chave no processo educacional. “Seria a naturalização do descrédito dos professores”, reflete Teixeira.
“Muitos críticos à EaD consideram que a falta de rigor na elaboração e na execução das formas de aprendizagem se tornou o próprio algoz do conhecimento científico”, afirma Scherdien.
Para ela, questões socioeconômicas e o papel do espaço escolar e do professor são itens que não podem ser ignorados no debate do futuro do ensino básico ou superior.
Defensora da educação a distância como mecanismo facilitador e de democratização do conhecimento, De Pádua se diz pessimista com os desdobramentos de 2020.
“Empresas que tratam a educação como mercadoria”, diz, “vão utilizar da abrangência do ensino remoto emergencial para promover a educação a distância, justificando que ‘são novos tempos’ e que, durante a pandemia, ‘conseguiram provar’ que pode ser feito.”
Scherdien defende o uso do recurso EaD como auxiliar e facilitador de processos de aprendizagem, “mas não substitui o papel central do professor quando se busca um ensino de excelência.”
“Basta pensarmos o seguinte: ler um resumo de um livro é a mesma coisa que ler o livro? Assistir a um filme é a mesma coisa que ler sua sinopse? “, exemplifica. “Pode ser um recurso complementar, mas não serve como protagonista no processo educativo.”
O que dizem as instituições?
Veja, a seguir, os comunicados na íntegra:
Cruzeiro do Sul Educacional
A Cruzeiro do Sul Educacional reitera que durante o período da quarentena nenhum dos alunos das instituições de ensino superior (IES) do grupo ficou sem professores e as aulas estão sendo aplicadas na modalidade de Ensino Remoto Síncrono Emergencial (ERSE).
O Grupo esclarece ainda que a modalidade EaD não pode ser confundida com o Ensino Remoto Síncrono Emergencial que a Cruzeiro do Sul Educacional adotou neste momento de pandemia. O ERSE se dá por meio de aulas “ao vivo”, ministradas pelos docentes de cada IES, no mesmo dia e horário da aula presencial, com o mesmo conteúdo e interação, mas que usam da tecnologia para conectar alunos e professores, e também de forma assíncrona, na qual o conteúdo fica disponível na plataforma, medida que está em total conformidade com a Portaria do MEC nº 544.
Neste momento triste e sem paralelos de crise mundial que se abateu sobre o Brasil desde meados de março e atinge praticamente todos os setores da economia, a Cruzeiro do Sul Educacional tem evitado tomar medidas mais drásticas, mesmo sofrendo com o aumento expressivo da inadimplência e da evasão, resultados do impacto da pandemia no emprego e na renda de seus alunos e famílias. Mas o agravamento e prolongamento da crise econômica, somados às incertezas quanto ao semestre seguinte, levaram o grupo a adotar uma adaptação de custos, inclusive e inevitavelmente de pessoas, de modo a manter e preservar minimamente a saúde financeira, a qualidade de sua operação e a pontualidade dos seus compromissos. Uma medida que não afetou a qualidade de ensino dos alunos.
Laureate Brasil
A pandemia do novo coronavírus afetou diversos setores da economia, sendo o mercado de educação um dos mais impactados e, também, um dos primeiros a se reinventar neste cenário. Para instituições de ensino que já atuavam com a modalidade de educação a distância (EAD), a adaptação à nova realidade foi mais ágil, porém não menos trabalhosa e desafiadora. Foi o que ocorreu com a rede Laureate Brasil, cujo processo para ajustar as aulas presenciais em remotas síncronas (ao vivo) aconteceu em apenas 48h. Conseguimos aproveitar nossa expertise e rapidamente mover as aulas presenciais para um ambiente digital profissional e com todas as ferramentas pedagógicas necessárias.
Para o sucesso dessa transição, realizada somente em razão das determinações governamentais e das orientações dos órgãos competentes de saúde, investimos em recursos tecnológicos, em capacitação de pessoas – tanto colaboradores administrativos como docentes – , em materiais de apoio como tutoriais para todos os nossos públicos, entre outros, justamente porque o formato de aula remota síncrona (ao vivo) é muito diferente de uma disciplina no modelo online. Dessa forma, o calendário acadêmico seguiu sem interrupção, possibilitando que os alunos tivessem acesso ao conhecimento com os mesmos professores, nos mesmos dias e horários, com a mesma qualidade de ensino para seguir os seus planos de estudos.
Sobre as demissões ocorridas no mês de maio, informamos que elas fizeram parte de um movimento importante de unificação da área acadêmica das modalidades de educação a distância (EAD) e presencial de nossas instituições de ensino, com o objetivo de ampliar as sinergias e o alinhamento pedagógico dos cursos, e não ocorreram por conta da pandemia do novo coronavírus. Afinal, vivenciamos um momento de transformação e entendemos que o mundo tem se tornado cada vez mais digital, assim como o mercado de trabalho. Por isso, acompanhar esse novo contexto é fundamental para o setor de educação e, também, para a Laureate Brasil.
Os cursos digitais, desde o final de maio, passaram a contar com a atuação dos docentes presenciais das instituições de ensino, trazendo unidade ao processo pedagógico e eliminando ainda mais as barreiras entre o presencial do virtual. Os professores desligados em maio trabalhavam exclusivamente com as disciplinas on-line e nosso objetivo é que os docentes das instituições atuem em ambas as modalidades de ensino. Para essa tomada de decisão foi necessário fazer ajustes no corpo docente da área de educação digital, o que não impactou de maneira alguma a qualidade acadêmica oferecida, que visa sempre a melhor formação aos alunos.
Sobre o futuro, estamos acompanhando as novas tendências que estão surgindo, assim como os novos hábitos de consumo. A educação terá um componente digital mais relevante, ou seja, uma integração maior entre os canais físicos e digitais estará cada vez mais presente.
Universidade São Judas
Docentes – A Universidade São Judas informa que a cada encerramento de semestre letivo há movimentações no corpo docente, tendo em vista que é um momento de planejamento de turmas dos cursos existentes e lançamento de novos cursos nas unidades acadêmicas. O turnover natural é fruto de um criterioso processo de avaliação institucional. Vale destacar que os desligamentos entre um semestre e outro não impactam os estudantes ou as atividades acadêmicas da Universidade.
Reforçamos ainda que é um processo que envolve, também, abertura de novas vagas para o corpo docente e oportunidades de promoções a partir desta dinâmica que se configura em uma instituição de ensino superior. Ressaltamos que seguimos investindo na capacitação e desenvolvimento de nossos educadores para melhorar ainda mais a relação de ensino e aprendizagem, além de se manter atenta aos novos talentos, valorizando o papel transformador dos professores na sociedade.
Continuidade das aulas – Desde 16 de março, em observância às normas legais e regulamentares do MEC, a São Judas converteu o cenário de aprendizagem para o ambiente digital, onde os mesmos professores ministram suas aulas, nos mesmos horários, para as mesmas turmas e estudantes. O uso dessa tecnologia proporcionou a 100% dos alunos e alunas a continuidade dos estudos, com a habitual qualidade acadêmica. Reforçamos que a instituição não oferece cursos de EaD.
Ressaltamos que a Universidade São Judas é a 2ª melhor Universidade Privada em São Paulo pelo conceito do MEC e segue aprimorando o seu Ecossistema de Aprendizagem com elementos alinhados às melhores práticas mundiais de ensino superior para manter o seu compromisso com a qualidade e inovação acadêmica, características que estão conectadas ao DNA e história da instituição. Todas as movimentações e ações realizadas têm como propósito melhorar ainda mais a relação de ensino e aprendizagem e levar educação de qualidade para nossos estudantes e para todos os brasileiros.
Nem todas as Instituições de Ensino Superior responderam à Catraca Livre.
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